quinta-feira, 11 de março de 2010

Capítulo 2

Vamos, José. Tua hora começou.
Essa fala deu início à única hora que José Ramiro teria para contar a sua versão. Por onde começaria? Melhor explicar como era sua relação com ele.
Eu não sei, senhor. Eu era muito amigo dele quando piá. A gente brincava de manhã até a noite na vila. Minha mãe me dizia José, esse menino parece tão bom, pega essa amizade e faça o bem, José, anda mais com ele, José, ó ele ali te chamando. E eu ia sempre. Ele sempre foi bom. Quando era meio moço, ia pra casa de noite e logo em seguida saía com ele de novo, porque a gente gostava de ver as mulheres que caminhavam na noite.
Prostitutas?
Também. Tinha umas chinas que davam gosto. Ele toda hora queria ir ter algo com elas, pelo menos um papo. Mas sempre chegava o leão-de-chácara e acabava com tudo. Lembro que ele era fascinado pela Lola, uma mulher bem gorda, mas que olhava pra ele como se quisesse comer melancia com muita sede.
O interrogador ficou se perguntando até que ponto José chegaria com essas reminiscências. O tempo passava e a única coisa que descobrira é que José e o outro homem eram amigos de infância.
Eu lembro também, senhor, que a gente jogava bola na zona norte, quando os amigos dele convidavam. Era difícil de jogar, eram muito cavalos. Se desse toquinho, era porrada na hora. Até teve um lance que eu fiz que...
Chega, José. Quem vive de passado é museu. Quero saber mais sobre ele.
Bom, se quem vive de passado é museu... Pra que saber do passado?
Quero saber como vocês chegaram ao que fizeram.
Então o passado não é tão inútil assim.
O interrogador se irritava. Ele pega mais um cigarro.
José, são 2h40. Dez minutos já foram. Tenho só mais cinquenta pra te escutar. Tu vai me falar desse maldito crime antes das 3h30 ou vai preso por justa causa. Tá afim disso?
Não, senhor.
José olha novamente o policial ao lado da porta. O cacetete. Antes a arma lhe chamara a atenção, mas o cacetete era muito familiar. Ter se metido com aqueles caras rendeu muito cacetete. Se falasse neles, os maltratos continuariam. Sua filha precisava dele. Não podia mais pensar na falecida, nem na mãe. Reclinou-se na cadeira e pensou em largar tudo de uma vez, se deixar vencer pela verdade e falar, falar abertamente ao interrogador.
Mais um minuto, José...
A primeira vez que saí com Cristo para fazer alguma desgraça foi há um ano.
Ah, finalmente. Posso saber o que fizeram?
Assaltamos uma senhora.
E o que levaram?
Acho que uns R$ 40 e uma corrente de ouro.
Ouro puro?
Não sei, acho que sim.
Ladrão inexperiente não sabe nem o que rouba.
Não sabia mesmo. Só depois fiquei sabendo um pouco mais.
Arrependeu-se de ter dito. Falar mais qualquer coisa faria com que sua filha sofresse. Não quero mais que ela sofra, chega disso! Uma vez já fora suficiente... Pra que mais? Se ele a deixasse... Melhor nem pensar. Com a esposa já fora difícil; com a filha, então, talvez fosse pior. Sempre que pensava na filha, mais do que remoer-se em episódios infantis dela, um aperto no estômago lhe era constante. Nauseava só de pensar naquelas consequências.
Tá pensando muito, José. Organizando as ideias?
Não. Pensando em minha filha.
Mais alguns minutos passaram novamente. O interrogador já notara a dificuldade que seria aquela hora. A única coisa que ele não esperava de um assassino frio é que ele começasse a chorar ao falar sobre quem realmente era ele.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Capítulo I

Entra o interrogador. O cheiro de lâmpada queimando já dificultava a respiração. Não havia escapatória, ele teria de dizer tudo.
Qual teu nome?
José.
José do quê?
José Ramiro da Silva.
Muito bem. Foste visto no dia do assassinato de Clara. O que podes me dizer a respeito?
Que posso dizer? Fui visto e estava lá mesmo.
Assim, simplesmente?
É.
O interrogador acende um fósforo, eleva o cigarro à boca. Olha manso, mas seguro. José o observa.
Quer um cigarro?
Sim.
José pega um do maço do homem. Enquanto ele observa o que José pega, este o observa mais atentamente: grisalho, aparentava uns 60 anos. Parecia experiente na profissão. 
Você sabe que será preso, não é?
Sei?
Sabe sim. Quero que me conte passo a passo tudo como ocorreu.
José olhou para os lados. Viu apenas um policial que, apalpando a arma que havia em seu bolso, também o olhava. Como conseguiria escapar daquilo? Os braços encolhidos com as mãos entre as pernas denunciavam sua posição. Quem era ele para negar tudo o que ocorreu?
Estou esperando.
Pensava se conseguiria conter a emoção, as lágrimas, o nervosismo. Pensou na mãe avisando que não poderia se meter com aqueles caras. Lembrou da esposa, o olhar decrépito, sua agonia. Da filha, apenas o sorriso. O chamado para ajudá-la com a Barbie que quebrara. Queria uma nova e não poderia dá-la. Pensou no dinheiro. Lembrou da necessidade. Começou a retomar o ocorrido.
Vamos, homem!
Senhor, eu tenho dificuldade em contar como tudo ocorreu. Sou um homem de bem, não um qualquer. Tive esposa, tenho uma filha. Não posso ser preso por isso.
Não te perguntei sobre tua prisão.
Eu sei, mas eu preciso ser livre. Minha filha precisa de mim.
Pensasse nisso antes de fazer aquilo.
Ele realmente deveria ter pensado. Quando deixou a filha sozinha em casa, não pensava que alguém pudesse entrar lá. Deixou tudo em casa para fazer o que prometera. Fez o que fez e ainda sofreu punição. E sofrerá ainda mais.
Não tenho até amanhã para esperar pela história.
Não seria uma história. Seria sua versão. Nunca se conta uma história como ela realmente aconteceu, pois a sua ótica não será a mesma de outros.
Novamente pensou na esposa. Não vai, José, ela dizia. José, se tu fores, nada mais vai dar certo na tua vida. José, pra quê isso? José, isso precisa acabar. Para, mulher! Não fala mais! Não aguento mais essa tua voz! E mudava o tom em seguida, sabia que ela estava certa. Bem certa, aliás.
Olhava o relógio da parede da sala. Já eram 2h30. Desde a manhã anterior na delegacia. Só agora o tinham chamado pra falar.
Fala, caralho!
É necessário começar. Disso ele não tinha mais nenhuma dúvida. Tal como não teve quando fez sua pior ação na vida.